O cruzamento de dados da operação Sem Desconto com nomeações de diretores de Benefícios no Instituto Nacional do Seguro Social (setor responsável pelas assinaturas de convênios) e valores descontados pelas entidades mostram como os governos de Jair Bolsonaro (PL) e Lula (PT) tiveram papéis complementares na “farra do INSS” revelada pelo Metrópoles.
A análise dos dados detalha como se deu esse movimento das entidades em busca dos convênios do INSS e como entidades criadas sob Bolsonaro fizeram o número dos descontos aumentarem exponencialmente já sob Lula.
A coluna analisou apenas entidades que firmaram convênios nos governos de Jair Bolsonaro e Lula. Grandes entidades como a Contag, Sindnapi e Conafer, por exemplo, embora na mira das autoridades e com descontos bilionários, não foram levadas em conta porque tiveram seus convênios firmados antes de 2019.
Sob ambos os presidentes, houve forte aumento no número de associações agraciadas com acordos que lhes permitiram efetuar descontos sobre aposentados.
Nos anos do governo Bolsonaro, ao menos quatro diretores de Benefícios passaram pelo INSS. Juntos, eles assinaram convênios com 12 entidades que efetuaram descontos no valor total de R$ 2,1 bilhões.
Já sob Lula, três diretores de Benefícios, sendo um deles ainda nomeado por Bolsonaro, assinaram 18 convênios, mas que descontaram bem menos, R$ 235 milhões.
O motivo do número bem inferior de descontos efetuados pelas entidades cujos convênios foram assinados sob Lula é que elas não iniciaram as cobranças porque na mesma época o Metrópoles revelou a “farra do INSS”.
O aumento de entidades com convênios começa na gestão de José Carlos Oliveira na diretoria de Benefícios, ele foi nomeado por Jair Bolsonaro.
Além do cargo, onde ficou entre maio e novembro de 2021, Oliveira também foi presidente do INSS e ministro da Previdência durante o governo Bolsonaro (PL).
Ele foi responsável por pelo menos três convênios, todos em 2021, com entidades que arrecadaram R$ 695 milhões.
- ABRAPPS – R$ 2 milhões – liberada por José Carlos Oliveira
- AMBEC – R$ 500 milhões – liberada por José Carlos Oliveira
- AAPB – R$ 191 milhões – liberada por José Carlos Oliveira
Tanto a Associação dos Aposentados Mutualistas para Benefícios Coletivos (Ambec) como a Associação dos Aposentados e Pensionistas do Brasil (AAPB) são suspeitas de terem transacionado com supostos operadores do esquema.
Dessas, a que arrecadou mais dinheiro por meio dos descontos foi a Ambec, que totalizou R$ 500,9 milhões entre dezembro de 2021 e março de 2025. Segundo a PF, ela teria enviado R$ 11,9 milhões a Antonio Carlos Camilo Antunes, o “Careca do INSS”.
Segundo a CGU, a arrecadação da entidade em 2021 foi de R$ 135 mil. Já no ano seguinte, o valor aumentou 110 mil vezes, somando R$ 14,9 milhões. Em 2023, mais um salto: R$ 91,3 milhões.
Como mostrou o Metrópoles, o Careca do INSS recebeu, por exemplo, procuração para atuar pela Ambec perante o INSS.
Já a AAPB tem ligação com Cecília Rodrigues. A advogada, segundo a investigação, também teria presidido a associação.
Das três entidades beneficiadas por José Carlos Oliveira com o convênio, duas são citadas pela Controladoria-Geral da União com suspeitas sobre a capacidade de atender os associados.
Sobre a Ambec, a auditoria na sede da entidade, em São Paulo, mostrou que a Ambec não possui área destinada ao atendimento presencial dos seus associados, apenas via SAC.
Segundo a CGU, “a estrutura física apresentada não revela capacidade para localizar, captar, filiar e muito menos atender tantos associados com tamanha distribuição territorial”.
Também afirmam que o atendimento via SAC para aposentados e pensionistas pode ser pouco acessível, por se tratar geralmente de pessoas idosas e que, na sua grande maioria, não possuem familiaridade com esse tipo de atendimento.
Outra entidade liberada por Oliveira, a AAPB possui apenas estrutura em Fortaleza (CE) e não possui atendimento em outras localidades.
“Considerando a Folha de Pagamento do INSS de março de 2024, a AAPB possui 173.224 aposentados/pensionistas associados, residentes em 4.249 municípios nos 26 Estados e no Distrito Federal, o que sinaliza para que a estrutura localizada em Fortaleza não ter capacidade para localizar e captar associados de forma tão capilarizada, bem como para atender associados em todos esses municípios do país”, afirmou a CGU.
Como mostrou a coluna, embora não tenha sido alvo de busca na operação Sem Desconto, José Carlos Oliveira é citado em documentos da investigação sobre transações suspeitas de Cícero Marcelino, apontado como operador da entidade Conafer, em um sócio do ex-ministro.
Após deixar o cargo no governo Bolsonaro, José Oliveira mudou o nome para Ahmed Mohamad, segundo a PF.
“Nesse quadro, examina-se que José Laudenor (sócio de Oliveira) manteve vínculos financeiros com Cícero Marcelino (que, por sua vez, operou milhões de reais da Conafer) e também com Ahmed Mohamad (ex-Presidente do INSS e ex-Ministro do Trabalho e Previdência). Tais transações sugeriram a utilização das contas de José Laudenor para movimentar recursos de terceiros e/ou atividades não declaradas”, diz a PF.

Com a ida de José Carlos Oliveira para a presidência do INSS, em novembro de 2021, quem assumiu a diretoria de Benefícios foi Sebastião Faustino de Paula.
Sebastião Faustino foi responsável por assinar ao menos quatro convênios com entidades que descontaram ao menos R$ 757 milhões de aposentados e pensionistas.
- CAAP – R$ 251 milhões – liberada por Sebastião de Paula
- UNIVERSO – R$ 225 milhões – liberada por Sebastião de Paula
- UNASPUB – R$ 267 milhões – liberada por Sebastião de Paula
- CINAAP – R$ 14 milhões – liberada por Sebastião de Paula
A União Nacional de Auxílio aos Servidores Públicos (Unaspub), além de ter sido a que mais arrecadou dentre as liberadas por Sebastião, também é apontada como tendo feito repasses às empresas do “careca do INSS”.
Ela tem o primeiro registro de valores em descontos em 2022, quando recebeu R$ 8,4 milhões. Em 2023, houve um salto para R$ 54,3 milhões, incremento equivalente a 541%. A entidade somou, desde julho de 2022, o montante de R$ 267,3 milhões em descontos.
Outra entidade liberada por Sebastiao Faustino, a Universo foi alvo da auditoria da CGU. Segundo os técnicos da Controladoria, a entidade contava com dois colaboradores no momento da visita, mas foi informado que a entidade tem oito empregados contratados e outros cinco colaboradores eventuais nas áreas de medicina, odontologia e assistência social.
“Considerando a Folha de Pagamento do INSS no mês de março de 2024, a AAPPS Universo possui 250.010 aposentados/pensionistas associados, residentes em 4.219 municípios nos 26 Estados e no Distrito Federal. Assim, em uma primeira análise, a estrutura física e de pessoal sinaliza ser insuficiente tanto para localizar, captar e filiar esse volume de associados com tamanha capilaridade, quanto para atendê-los”, afirma a CGU.
Quem substituiu Sebastião Faustino na diretoria de Benefícios foi Edson Yamada, ele ficou de junho de 2022 até fevereiro de 2023.
Embora tenha ficado nos primeiros meses do governo Lula, Yamada é ligado ao ex-ministro de Bolsonaro, José Carlos Oliveira.
Os dois são sócios em uma empresa e aparecem em relatórios da PF sobre transações suspeitas relacionadas a Cícero Marcelino, apontado como operador da Conafer.
Yamada assinou convênios com seis entidades que efetuaram ao menos R$ 693 milhões em descontos de aposentados e pensionistas.
- AP BRASIL – R$ 137 milhões – liberada Edson Yamada
- CBPA – R$ 221 milhões – liberado por Edson Yamada
- AMAR BRASIL- R$ 83 milhões – liberado por Edson Yamada
- CEBAP – R$ 195 milhões – liberado por Edson Yamada
- ACOLHER – R$ 57 milhões – liberada por Edson Yamada
- ANAPI – sem informações – liberada por Edson Yamada
Uma delas, a CBPA, localizada em Brasília, recebeu uma visita da auditoria da CGU.
Segundo CGU, a entidade não possui infraestrutura para localização, captação, cadastramento “e muito menos fornecimento de serviços para o quantitativo de associados filiados, posto que se trata de uma pequena sala comercial”.
“Nessa verificação preliminar, não ficou demonstrada a capacidade operacional da CBPA para proceder à captação e à filiação de tantos aposentados/pensionistas, tampouco de prestar serviços ou realizar atendimento ao quantitativo de filiados que possui, em milhares de municípios pelo país”, afirmou o órgão.
Por fim, já no governo Lula, quem assumiu a diretoria de Benefícios foi André Fidelis. Ele foi nomeado em fevereiro de 2023 e foi demitido em julho de 2024, após as reportagens do Metrópoles.
Fidelis assinou convênio com entidades que efetuaram descontos de R$ 142 milhões.
O valor dos descontos dessas entidades só não foi superior porque a maioria delas sequer começou a efetuar as cobranças por causa da revelação do esquemas pelas reportagens do Metrópoles.
- Aapen – R$ 69 milhões – liberada por André Fidelis
- UNSBRAS – R$ 14 milhões – liberada por André Fidelis
- AAB – sem informação – liberada por André Fidelis
- ABAPEN – R$ 2 milhões – liberada por André Fidelis
- MASTER PREV CLUBE DE BENEFÍCIOS – R$ 24 milhões
- ASBAPI – R$ 33 milhões – liberada por André Fidelis
- AASAP – sem informação – liberada por André Fidelis
- ANDDAP – sem informação – liberada por André Fidelis
- CABPREV – sem informação – liberada por André Fidelis
- Keeper – sem informação – liberada por André Fidelis
- AASPA – sem informação – liberada por André Fidelis
- Cenap/Asa – sem informação – liberada por André Fidelis
- Abenpreb – sem informação – liberada por André Fidelis
A Aapen (antes, ABSP), que também teve ganhos altos por meio dos descontos, é apontada com uma das entidades que teria ligação com a advogada Cecília Rodrigues Mota, apontada como uma das operadoras do esquema.
Segundo a PF, Cecília já foi presidente da associação.
A Aapen também foi uma das entidades escolhidas para uma auditoria da CGU, que foi até a sede, em Fortaleza.
Os resultados, segundo o órgão, mostraram que a entidade teria estrutura física adequada ao funcionamento na capital cearense. Entretanto, “não possui escritórios ou filiais em outras localidades, em que pese ter sido indicado que a entidade conta com parceiros (clínica, laboratório, empresa de planos funerários, escritório de assessoria jurídica), todos em Fortaleza (CE)”.
André Fidelis, por sua vez, é suspeito de ter recebido dinheiro de um lobista envolvido no esquema -o “careca do INSS” – e de entidades da “farra do INSS”. O total apontado pela PF seria de R$ 5,1 milhões, que teriam sido recebidos por meio da empresa do filho.
Na semana passada, a Advocacia-Geral da União (AGU) decidiu entrar com uma ação contra entidades e empresas envolvidas no esquema, mas deixou de fora Fidelis. A CGU, então, pediu que a ação foi aditada para incluir o ex-diretor de benefícios que supostamente teria recebido vantagens indevidas durante o exercício do cargo.
Defesa
O ex-diretor Sebastião Faustino de Paula afirmou à coluna que não possui informações detalhadas sobre o assunto tratado na reportagem, mas “é possível que tenha assinado algum desses acordos de cooperação técnica com entidades associativas, seguindo a rotina e os fluxos das normas vigentes na ocasião”.
“Na hipótese de haver eventual citação [na investigação], estarei pronto para colaborar com as autoridades do sistema de justiça, esclarecendo, de forma transparente e serena, quaisquer dúvidas sobre minha atuação no mencionado órgão”, afirmou.
Os demais ex-diretores citados na reportagem não responderam à coluna.
A AP Brasil afirma que preza sempre pela transparência, ética e principalmente o respeito pelos associados e ao público em geral e diz que seu trabalho é “tão somente representar os nossos associados perante as demandas objeto do trabalho desenvolvido pela instituição, além disso, poder proporcionar benefícios que justifique o valor mensal da mensalidade paga à Associação”.
A CBPA diz que é uma instituição de longa data e que cumpre regularmente o papel de oferecer a seus associados que fazem a contribuição confederativa planos de benefícios.
A CBPA reitera seu total apoio às instituições de controle brasileiras, que buscam proteger os aposentados de práticas fraudulentas com as quais não compactua e as quais condena veementemente.
Já a AAPB diz que “sempre obedeceu a legalidade, tendo apresentado toda documentação pertinente para a obtenção do Acordo de Cooperação Técnica junto ao INSS e respeitando todo trâmite burocrático atinente a sua atividade”.
A Unaspub, por sua vez, publicou nota reafirmando sua compromisso com a “legalidade, ética e transparência, pilares que sempre nortearam a nossa atuação”.
“A Unaspub entende que as apurações devem seguir seu curso com independência, responsabilidade e pleno respeito ao devido processo legal”.