A promulgação da Lei nº 13.655/2018, que acrescentou dispositivos à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), buscou inequivocamente combater o fenômeno já muito conhecido como “apagão das canetas”. Na época, houve um intenso debate sobre os limites da responsabilização de agentes públicos.
Enquanto associações de membros do Judiciário, Ministério Público e auditores fiscais pediram o veto integral da proposta, sustentando que ela criaria “campos de irresponsabilidade”, diversos juristas a defenderam como marco de segurança jurídica e racionalidade na atuação estatal [1].
O temor que pairava e ainda paira sobre os gestores tem sido objeto de discussões doutrinárias, judiciais e empíricas. Como demonstrado por Rodrigo Medeiros de Lima (2023), esse fenômeno decorre não da existência do controle em si, mas da insegurança jurídica advinda da ausência de regras de conduta claras, inequívocas e objetivas, cuja violação pode implicar responsabilização, da oscilação jurisprudencial e da predominância de normas de baixa densidade normativa nos textos legais brasileiros [2].
O fenômeno também tem sido reconhecido por autoridades com larga experiência na atividade de controle. Em entrevista concedida à CNN Brasil em dezembro de 2023, o ex-presidente do Tribunal de Contas da União (TCU) Bruno Dantas afirmou que a atuação punitiva desmedida de órgãos de controle, especialmente durante a Operação Lava Jato, contribuiu diretamente para o temor generalizado dos gestores públicos.
“[O] que criamos no Brasil com a jurisprudência da Lava Jato, infelizmente, foi uma infantilização do gestor público, que não conseguia tomar decisões. Eles ficavam absolutamente paralisados e precisavam de um aval prévio dos órgãos de controle para tomar decisões importantes” [3], disse Dantas.
O discurso do então presidente do TCU corrobora a existência de um ambiente institucional marcado pela insegurança decisória e pela retração administrativa diante do risco pessoal de responsabilização.
Este artigo busca demonstrar, à luz de referências teóricas e da jurisprudência brasileira sobre o crime de exegese, como a nova LINDB e os entendimentos mais modernos sobre o que deve se compreender por dolo e por erro grosseiro podem — e devem — afastar o punitivismo irracional na administração pública.
A incerteza normativa e o risco da exegese criminalizada
A jurisprudência brasileira já reconhece, há tempos, a impropriedade de se punir condutas criminosas baseadas em interpretações juridicamente controversas. O chamado crime de exegese, expressão utilizada pelo Ministro Luiz Fux em alguns precedentes, refere-se à tentativa de criminalização de atos fundados em entendimentos jurídicos passíveis de debate ou posteriormente superados.
No julgamento da Exceção da Verdade n° 50, o STJ rejeitou a acusação de prevaricação contra uma magistrada, destacando que o simples error in judicando, sem dolo específico de satisfazer interesse pessoal, não configura crime.
De forma análoga, no Inq 2.482/MG, o STF rejeitou denúncia contra ex-prefeito que contratou bandas sem licitação, tendo previamente consultado a assessoria jurídica. Fux salientou que “quem consulta e recebe resposta de um órgão jurídico no sentido de que a licitação é inexigível […] não tem uma manifestação voltada à prática de um ilícito”, afastando a ilicitude da conduta.
Esses precedentes demonstram que o elemento subjetivo — a vontade consciente de descumprir a lei — é fundamental para caracterizar a responsabilidade penal.
A LINDB e o novo standard de responsabilização
A Lei nº 13.655/2018 introduziu dispositivos que obrigam os órgãos de controle e o Judiciário a considerar as dificuldades reais enfrentadas pelo gestor público (arts. 21 e 22) e as consequências práticas de suas decisões (art. 20). Também condicionou a responsabilização pessoal de agentes públicos à presença de dolo ou erro grosseiro (art. 28).
Apesar de críticas iniciais, o tempo cuidou de demonstrar que a legislação não estabeleceu leniência, mas um padrão de racionalidade e justiça no controle da atividade administrativa.
Como destaca o procurador Rodrigo Lima (2023), o Decreto nº 9.830/2019 conceituou erro grosseiro como aquele “manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave”. Ainda que a subjetividade do conceito permaneça, a positivação do standard impõe um deslocamento da zona de certeza quanto à responsabilização, em benefício do agente público.
O autor enfatiza que embora o TCU tenha, por vezes, restringido a aplicação do art. 28 da LINDB à seara sancionadora, a postura deveria também, em certos casos, valer para a responsabilização ressarcitória, especialmente quando diante de valores vultosos e de riscos extraordinários da função pública.
Lima também cita o trabalho de Rodrigo Valgas dos Santos, segundo o qual o condicionamento da responsabilidade pessoal de agentes públicos, inclusive ressarcitória, à ocorrência de, no mínimo, culpa grave é prática comum no Direito
comparado, estando presente em países como Portugal, Uruguai, Colômbia, Espanha, Alemanha, Itália e França.
A jurisprudência do STJ também já reconheceu a aplicabilidade do art. 944, parágrafo único, do Código Civil à lógica da responsabilidade por danos no direito civil.
No REsp 1.270.983/SP, da relatoria do ministro Luís Felipe Salomão, por exemplo, o Tribunal assentou que, embora a reparação integral seja regra, “a norma prevista no art. S44, parágrafo único, do Código Civil de 2002 consubstancia a baliza para um juízo de ponderação pautado na proporcionalidade e na equidade, quando houver evidente desproporção entre a culpa e o dano causado”.
A racionalidade da mens rea e a nova LIA
O filósofo H.L.A. Hart, no livro Punishment and Responsibility, assenta que o sistema jurídico paga um preço pelo “reconhecimento geral de que o destino de um homem deve depender das suas escolhas” e que “tal característica existe para fomentar a virtude social primordial do autocontrole.” [4]
A razão empregada pelo direito penal para a punição de cidadãos é, assim, justamente a existência de mens rea, que traduz a ideia da necessidade de “mente culpada”.
Ao tratar do pensamento de Hart, Neil MacCormick afirma que “pode-se punir apenas aqueles que tiveram uma escolha quanto a infringir ou não a lei, e que exerceram essa escolha em favor da infração.” O autor escocês destaca que a ação voluntária “é um pré-requisito do direito de punir como um requisito de justiça, e não como um mero corolário do utilitarismo” [5].
Essa compreensão fundamenta a crítica ao crime de exegese e deve ser estendida para o âmbito sancionatório administrativo: punir quem erra sob dúvida legítima é ignorar a natureza interpretativa do direito, especialmente em sistemas regulados por princípios vagos e normas de textura aberta. Regras abstratamente consideradas, como ensina Hart, geralmente possuem zonas de incerteza hermenêutica em sua aplicação in concreto.
O sistema jurídico brasileiro também incorporou esse critério subjetivo de responsabilidade à nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 14.230/2021), que passou a exigir a presença de dolo direto, e não mais apenas dolo genérico ou culpa, para fins de condenação de agentes públicos. A mudança legal coaduna-se com a noção de mens rea como elemento imprescindível para imputação de condutas ilícitas.
A reciprocidade e os limites do direito, segundo Lon Fuller
Para Lon Fuller, ex-professor da Universidade de Harvard, o direito pode ser definido como “a empreitada de sujeitar a conduta humana à governança de regras”. Segundo esse autor, para um sistema ser qualificado como jurídico, deve almejar perdurar no tempo e, para tanto, não terá outra alternativa senão regular de forma adequada o que exige de uma determinada coletividade.
Essa regulação adequada, por sua vez, se dá por meio da tentativa de observância, na maioria das oportunidades, de oito princípios básicos: o direito deve ser (1) público, (2) prospectivo, (3) claro, (4) consistente, (5) congruente, (6) duradouro, (7) geral e (8) possível de ser cumprido.
Fuller exemplifica que “assim como nós não poderíamos descrever como ‘faca’ algo que não tenha poder cortante, não poderíamos descrever um sistema sem essas características como jurídico” [6]. O filósofo afirma que esses oito princípios da legalidade compõem o que se denomina a “moralidade interna que torna o direito possível”.
Segundo Kristen Rundle, professora da London School of Economics, a obediência a tais princípios enseja uma relação de reciprocidade entre o Estado – o criador das regras – e o cidadão – o cumpridor das normas.
A reciprocidade defendida por Fuller sinaliza para igual presença e responsabilidade do Estado e do cidadão na criação e na obediência das leis, num reconhecimento de existência de boa-fé recíproca.
Daí a razão pela qual a doutrina de Fuller é denominada interacionista, e não unidirecional; e contempla um inequívoco aspecto de boa-fé objetiva e de potencial reconhecimento de dificuldades interpretativas nos casos concretos [7].
O “efeito dissuasório não intencional”, o “viés retrospectivo” e a repartição dos riscos
Como observa Lima (2023), a responsabilidade do gestor público deve ser examinada em função da boa-fé, da racionalidade e dos mecanismos institucionais de prevenção.
Ausente dolo ou culpa grave, a responsabilização excessiva deixa de atender ao interesse público, inclusive por motivos pragmáticos: afasta bons profissionais da gestão e desestimula a prática de atos administrativos tidos como desejáveis e, muitas vezes, necessários.
No âmbito da análise econômica do direito, esse efeito é qualificado como “unintended deterrence effect”, que pode ser traduzido como “efeito dissuasório não intencional”.
Essa expressão, utilizada por Richard Posner [8], no contexto jurídico ou administrativo, descreve uma situação em que uma norma jurídica vaga — como um princípio abstrato — acaba inibindo condutas não só ilegítimas ou ilícitas, mas também legítimas e desejáveis, como a tomada de decisões por agentes públicos em casos em que a ação atende ao interesse público, devido ao medo de responsabilização.
A ideia de falha sistêmica como causa de danos à administração, especialmente quando valores geridos são altos, reforça que o controle deve identificar e corrigir falhas estruturais, não punir indiscriminadamente indivíduos.
Ademais, a racional distribuição dos riscos administrativos (risk allocation) é prática consagrada em diversos países. Em muitas nações desenvolvidas, os gestores públicos possuem imunidade ou são resguardados por seguros específicos que visam protegê-los contra ações judiciais decorrentes de decisões complexas e potencialmente impopulares, sem que respondam com seu próprio patrimônio pessoal, tal como aqui ocorre com magistrados, advogados públicos e membros do Ministério Público.
Nos Estados Unidos, por exemplo, seguradoras oferecem apólices denominadas Public Officials Liability Insurance, voltadas a proteger dirigentes eleitos ou nomeados contra alegações de má gestão, violação de dever funcional ou outras condutas controversas praticadas no exercício regular de suas funções.
Conforme destaca material institucional da seguradora Liberty Mutual, por exemplo, “mesmo os servidores mais conscientes podem se ver envolvidos em ações judiciais” e, diante da elevação contínua das indenizações e acordos, “uma única ação pode causar sérios danos às finanças e à reputação da organização” [10].
Esse tipo de solução evidencia o quanto o sistema brasileiro ainda precisa avançar na estruturação de mecanismos institucionais adequados para proteger o agente que atua de boa-fé e com racionalidade, inclusive para evitar a responsabilidade ressarcitória desproporcional.
Não é possível aos nossos juristas corriqueiramente descreverem a dificuldade da atividade interpretativa pela qual passam os operadores do direito e depois tratarem os administradores públicos como violadores de sentidos normativos que, no momento da tomada de decisão, eram incertos.
Isso, na verdade, revela um viés retrospectivo (hindsight bias), ou seja, a tendência humana de enxergar eventos passados como mais previsíveis do que realmente eram no momento em que ocorreram [9].
No contexto jurídico e administrativo, o viés retrospectivo pode levar controladores e julgadores a atribuírem culpa a agentes públicos com base no resultado final de uma decisão, ignorando o grau de incerteza enfrentado no momento da escolha.
Essa prática deturpa a avaliação da conduta e compromete a justiça da responsabilização, que pode formar o seu convencimento com base em informações conhecidas apenas ex post, distorcendo a avaliação de escolhas feitas ex ante.
Considerações finais
A responsabilização dos agentes públicos deve ser feita com racionalidade, justiça e respeito ao princípio da segurança jurídica. A nova LINDB, o requisito do dolo direito da nova LIA e a jurisprudência sobre o crime de exegese oferecem um caminho para sair da cultura do medo.
Como demonstrado, os precedentes do STF e STJ, as diretrizes da nova LINDB, os dados empíricos do TCU e a doutrina contemporânea apontam na mesma direção: o erro não doloso, baseado em interpretação juridicamente racional, em momento em que o direito era incerto, não pode ser punido e deve isentar o agente também da pretensão ressarcitória injusta e desproporcional.
Como ensinou Hart, é Hart destaca que é “iluminador olhar para as várias desculpas que o Direito admite, como acidente ou erro, como maneiras de recompensar a autorrestrição. Na verdade, o Direito diz que mesmo que as coisas deem errado, como de fato dão quando se comete erros ou ocorrem acidentes, uma pessoa cujas escolhas estão certas e que fez o possível para cumprir a lei não sofrerá”.
[1]
[2]
[3] e-paralisou-gestor-publico-diz-bruno-dantas
[4] H.L.A. HART, PUNISHMENT AND RESPONSIBILITY 182 (Oxford, 2008)
[5] in Neil MacCormick, H.L.A. Hart, São Paulo: Elsevier, 2010, tradução de Claudia Santana Martins
[6] FULLER, Lon L. The Morality of Law. New Haven: Yale University Press, 1964
[7] RUNDLE, Kristen. Forms Liberate: Reclaiming the Jurisprudence of Lon L. Fuller. Oxford: Hart Publishing, 2012
[8] POSNER, Richard A. Economic Analysis of Law. 9. ed. New York: Wolters Kluwer Law C Business, 2014
[9] KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012
[10] liability/public-officials-liability
- Flávio Jardim é desembargador federal do TRF da 1ª Região, graduado em direito pelo Centro Universitário de Brasília (2001), obteve o título de doutor em direito (S.J.D.) pela Fordham University (2018), LL.M. in American Law pela Boston University (2003) e mestrado em direito constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP (2012)