Às vésperas da 20ª edição, a Virada Cultural surgiu em São Paulo “sem que ninguém soubesse exatamente onde ia dar”. É o que diz, pelo menos, um dos nomes por trás da criação do evento na capital paulista, Carlos Augusto Calil.
Em 2005, Calil era secretário municipal de Cultura da cidade quando recebeu do então prefeito, José Serra (PSDB), a missão de dar vida a um projeto que oferecesse atividades culturais durante 24 horas. No dia 19 de novembro daquele ano, aconteceu, assim, a abertura da primeira edição da Virada Cultural, com uma apresentação de orquestra no Museu do Ipiranga, às 14h.
“Foi um fracasso. Pouquíssima gente foi, a orquestra tocou praticamente para ninguém, e a gente achou, das 14h até as 18h, que o programa tinha fracassado.”
Quando a noite começou, no entanto, veio a boa surpresa: a população lotou as programações da Virada no centro da cidade. Calil lembra que a experiência provou que o centro tinha vocação para o projeto, o que deu forças para que a iniciativa continuasse nos anos seguintes.
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Das 20 edições do projeto, o ex-secretário – hoje presidente do conselho administrativo da Cinemateca – esteve à frente das oito primeiras.
Ele diz que a Virada conquistou a cidade, mas que uma instituição, em particular, sempre foi contrária ao evento: “A polícia sempre foi contra, dizendo que não tinha condição de controlar a segurança das pessoas”.
“Às vezes, tinha um carro da polícia numa esquina e alguém tinha sido assaltado a 100 metros [dali]. O policial não ia atrás do assaltante, se fazia de desentendido. Havia um boicote. Já que não era do jeito deles, eles então não ofereciam grande segurança”, afirmou.
O “jeito deles”, explicou, seria cercar os palcos e revistar um por um todos os participantes do evento.
Em entrevista ao Metrópoles, Calil relembrou também episódios marcantes da Virada, como a confusão durante um show dos Racionais MCs, em 2007, quando policiais e fãs do grupo se enfrentaram na Praça da Sé. “Ali a Virada quase acabou”, disse, citando uma série de negociações para manter o evento no ano seguinte.
Vários anos depois de deixar a pasta da Cultura, o ex-secretário critica mudanças feitas no projeto pelas gestões mais recentes e diz que sonha em ver a Virada movimentando o centro com a mesma força de antes. “A periferia tem todo o direito a ter programa cultural, mas a Virada é o momento em que a população da cidade se encontra no centro.”





Virada Cultural 2023
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Confira entrevista completa com Carlos Augusto Calil:
O início da Virada
A Virada começou com um pedido do prefeito José Serra, que queria uma atividade cultural durante 24 horas em São Paulo.
A nossa primeira pesquisa nos levou àquela iniciativa francesa em Paris, chamada Noite Branca. Uma atividade de 24 horas, na qual se convida as pessoas a saírem de casa para experimentar situações novas. Por exemplo, um museu onde as pessoas podem visitar à noite.
A gente achou que era preciso criar algum tipo de evento que tivesse mais condições de atrair as pessoas. Então, acrescentamos música. Tinha música erudita, mas tinha música popular de todos os tipos. Pensamos que a atividade devia ser espalhada na cidade, nos bairros e no centro.
A primeira edição começou às 14h, no Ipiranga, com um concerto de música erudita. E foi um fracasso. Pouquíssima gente foi, a orquestra tocou praticamente para ninguém e a gente achou, das 14h até as 18h, que o programa tinha fracassado.
Às 18h, aconteceu um fenômeno inédito na cidade: as pessoas começaram a procurar as atividades no centro. Ficou claro para nós, ali, no primeiro dia, que a virada era no centro da cidade e até hoje eu insisto muito nisso.
A Virada se desvirtuou, foi parar na periferia. A periferia tem todo o direito a ter programa cultural, mas a Virada é o momento em que a população da cidade se encontra no centro.
A relação com o centro da cidade
[A Virada] começou naquele centro em torno da [Avenida] São João, da Praça da Sé, e acabou se estendendo até a Pinacoteca, onde está a Estação da Luz. Ela foi estendendo-se também na geografia da cidade.
As pessoas trocavam experiências, os jovens sobretudo, era muito interessante. Na Barão de Itapetininga, se não me engano, tinha um palco de rock. Nesse palco se encontrava o menino da zona leste com o da zona oeste. E os dois não sabiam onde era a Barão de Itapetininga. Então eles, debaixo do poste, abriam o mapa da Virada com todos os palcos e iam perguntando: “Onde é essa rua aqui? Onde é aquela rua ali?”.
Era uma descoberta do centro. O centro não é um bairro do morador do centro, o centro pertence a todos os paulistanos. Era muito importante que os paulistanos tomassem posse do lugar, ou conhecendo, ou revisitando.
O carnaval de rua vingou em São Paulo por causa da experiência da Virada. A Virada testou a possibilidade das pessoas tomarem as ruas, para expandir a alegria, para promover encontros, para todo tipo de atividade.
Maio de 2006
No ano em que o PCC aterrorizou a cidade com aqueles atentados, aconteceu uma semana antes da Virada. Então, houve negociações muito intensas e tensas com a polícia para saber se a Virada seria suspensa ou seria mantida.
Ela foi mantida porque o prefeito Kassab se entendia muito bem com o então governador, que era o Cláudio Lembo, e os dois, com a autoridade de governador e de prefeito, garantiram a realização da Virada.
Agora, nós todos temíamos pelo que ia acontecer. Se o PCC atacasse a multidão, você pode imaginar o pânico que ia causar. E também a população estava muito assustada. Então, foi muito emocionante ver, a partir da 18h, as pessoas chegando de mansinho, não mais em grupo e não mais com alarde. Todos, cada um, devagar, experimentando para ver o que ia acontecer.
Lá pelas 20h, a cidade estava tomada de milhares de pessoas. Todas elas, de certa forma, aliviadas de poder estar, poder ter uma experiência coletiva, sem ameaça do PCC. Mas ali, naquele momento, foi um teste de fogo.
Polícia contra a Virada
A polícia sempre foi contra a Virada, dizendo que não tinha condição de controlar a segurança das pessoas, que era melhor colocar, justamente, palcos na periferia.
Claro, com o objetivo de impedir que as pessoas da periferia fossem no centro. É óbvio isso. A Virada não é na periferia, a Virada é no centro. É para todos os paulistanos.
Era uma negociação muito dura com a polícia e era feita pelo prefeito, diretamente. No início, pelo [José] Serra, e depois pelo [Gilberto] Kassab, que foi o prefeito que continuou. E era uma situação muito complicada.
A polícia queria cercar os palcos, um por um, e fazer exame individual de cada pessoa. Você pode imaginar? A ideia da circulação era essencial para o sucesso da Virada e o que a polícia queria era justamente acabar com a circulação. A gente não aceitou isso, enfrentou pressão e aí havia um boicote da polícia.
A questão é que a população, ao se juntar, fornecia a própria segurança do evento, tirando, claro, um malandro ou outro que roubava celular. Mas isso não tem como evitar. Mesmo sem Virada, se você anda na Avenida Paulista, você corre o risco de ter o seu celular roubado.
Show dos Racionais
Ali a Virada quase acabou. Por inexperiência nossa, oferecemos um palco para os Racionais na Praça da Sé e eles convidaram um americano para começar o show. Acontece que a aglomeração [de público] foi ficando muito grande, e [quando o show dos Racionais começou] um grupo pulou em cima de uma banca de jornal, e da banca pulou em cima de uma espécie de marquise de um prédio.
Quatro policiais chamaram a Tropa de Choque. Ela chegou com violência, começou a bater no público, e em vez de empurrar o público para a Avenida Rangel Pestana, que era ampla, que daria no Parque Dom Pedro, empurrou as pessoas para a Rua Direita, para o centro fechado. Deu um tumulto enorme, que podia ter dado uma grande tragédia. Criou uma sensação de baderna e de insegurança muito grande, inclusive para o patrimônio.
Provavelmente em um show só deles [Racionais], não teria havido muita confusão. Aquela plateia ficou inquieta [com o atraso] e estavam, claro, já com muita bebida. Então, bebida, demora, subida na Marquise, chegada da Tropa de Choque: foi um desastre perfeito.



Cena do documentário Racionais das Ruas de São Paulo para o Mundo
Divulgação/ Netflix
Divulgação
Reprodução/Facebook
No domingo, [a confusão] tinha dado em todos os jornais, na primeira página. E, naquela segunda-feira, a Virada estava ameaçada. Precisamos, durante um ano, construir uma conversa muito longa com a própria segurança, com a própria PM e reformular os palcos para evitar que se repetisse aquela experiência.
A Virada sobreviveu porque já era, naquele momento, uma festa muito querida pela cidade. Foi um grande acidente de percurso, mas a atividade já tinha muita força na população. Sobretudo na população jovem.
As mudanças no projeto
A Virada, na medida que as administrações municipais foram mudando, foi mudando também. E não para melhor. Já na gestão do Haddad, ela deixou de ser Virada, parou à meia-noite.
A Virada no Autódromo [em 2017, com o prefeito João Doria (ex-PSDB)] foi uma tentativa gradativa de acabar com o evento. O Doria não teve coragem de cancelar, então ele confinou num lugar onde ninguém iria. E com isso esvaziou. É o centro da cidade que precisa ser reocupado. Interlagos não tem nada a ver com isso. Interlagos foi feito para fazer corrida de automóvel.
Então, desde a administração Haddad até agora, o que se fez foi esvaziar o centro e diminuir o tempo. Com isso, a Virada foi se diluindo.
E, hoje em dia, a Virada usa muito figurão, pagam uma fortuna. A nossa ideia era exatamente valorizar os artistas que não são consagrados, mas que são de muita qualidade. Os consagrados já têm espaço na mídia, na cidade.
Virada atual
O secretário atual municipal, Totó Parente, chamou os ex-secretários [para um encontro]. Na conversa que eu tive com ele, eu falei: “A Virada tem que voltar para o centro”. E a Virada está voltando para o centro porque ele percebeu que havia ali uma distorção.
Então não dá para virar a chave imediatamente e fazer como era antes. Mas você percebe um movimento no sentido de retornar às origens. Ainda que parcialmente.
No nosso tempo, custava muito pouco. Não tinha show de Caetano Veloso. Por quê? Porque custava R$ 700 mil na época. Com R$ 700 mil, você contratava 100 artistas.
Sonho para o projeto
Eu queria voltar àquela população circulando do jeito que circulava no nosso tempo. Milhares, milhões de pessoas. Era uma coisa muito impressionante.
Eu me lembro de uma vez levar o prefeito e os assessores dele, secretários, ali na sacada do Theatro Municipal e olhar para baixo. Era um rio de gente que vinha da Praça da República, que descia para o Anhangabaú, que subia. As pessoas estavam ocupando o espaço público, que é delas. Da melhor maneira possível.
Eu gostaria de ver essa alegria e liberdade de circulação. E essa condição de aproximar o jovem da zona leste do jovem da zona oeste. A virada era um encontro de classes sociais no centro da cidade de São Paulo. Era isso que eu gostaria de ver de novo.