O vídeo de um jornalista sendo espancado e levando um mata-leão em frente à Câmara Municipal de Santo Antônio do Descoberto nesta semana chocou entidades da imprensa, que repudiaram o ato. A violência, no entanto, não foi a primeira nem a mais grave no município do Entorno que coleciona agressões e até mesmo assassinatos contra profissionais da imprensa.
Em menos de 10 anos, dois jornalistas que exerciam a profissão na cidade goiana foram mortos após notícias que publicaram. Os crimes ocorreram em gestões anteriores. Em um dos casos, até hoje não se chegou ao mandante do crime. A cidade que fica a apenas 63 quilômetros da capital do país é um retrato de um faroeste em que deputados ameaçam sem pudor donos de páginas de notícias, servidores da prefeitura espancam jornalista durante o expediente e diretor de ação penal do município apoia o agressor após o ato.
Morte encomendada
Em 24 de julho de 2016, o jornalista João Miranda do Carmo foi alvejado 13 vezes. Ele estava em casa quando um grupo de mercenários do Distrito Federal preparou uma emboscada contra o homem. Os assassinos de aluguel, segundo o Ministério Público de Goiás, bateram na casa de João e pediram um copo d’água.
Sem desconfiar da fatalidade que sucederia, o jornalista foi atraído para a garagem em frente a sua residência. Aproveitando que o portão estava destrancado, os dois criminosos invadiram o imóvel e pegaram a vítima de surpresa, o que evitou que João reagisse. Ele foi atingido por diversos disparos. Os tiros atingiram o tórax, membro superior esquerdo e a face.
Após o assassinato, a dupla fugiu com o apoio de dois comparsas que estavam estacionados em frente ao local do crime. O MPGO identificou que o bando foi contratado para matar João por conta das reportagens que publicava. A investigação, no entanto, nunca foi capaz de apontar o mandante do caso. A denúncia foi aceita pela Justiça de Goiás, mas os criminosos ainda não foram julgados. Por essa razão, os nomes dos envolvidos não serão citados nesta reportagem.
“De fato, o crime foi premeditado, com recurso que dificultou a defesa da vítima, e mediante promessa de recompensa. Ademais, o delito foi praticado com o intuito de fazer calar um jornalista que publicava diversas irregularidades e condutas delituosas praticadas neste município, circunstâncias estas que denotam a latente periculosidade dos acusados”, destacou o MPGO na denúncia.
Um dos suspeitos nunca foi encontrado e o caso até este momento não foi julgado. Os três demais foram presos preventivamente, e o caso segue no TJGO.
Rixa pessoal
Um ano depois da morte de um jornalista que resultou na impunidade do mandante em Santo Antônio do Descoberto (GO), o blogueiro Luiz Cláudio Cezário, de 45 anos, mais conhecido como Neguinho Roriz, foi assassinado no município.
O crime ocorreu em outubro de 2017, em uma distribuidora de bebidas da cidade. O blogueiro estava no local, quando foi atingido nas costas por tiros disparados por Jovanildo Silva dos Santos – condenado a 27 anos de prisão pelo homicídio do blogueiro.
A investigação feita pela Polícia Civil de Goiás (PCGO) apurou, na ocasião, que a motivação teria sido uma rixa entre os dois. Jovanildo Silva Santos tinha problemas com o blogueiro, por causa de publicações que ele fazia em seu blog. O assassino reclamava das matérias de Neguinho Roriz, dizendo que Jovanildo tinha envolvimentos com crimes.
O julgamento é de 2021. O crime chocou a cidade, em 2017. Neguinho Roriz era bastante conhecido em Santo Antônio do Descoberto e chegou a ser ouvidor-geral da prefeitura.
Jornalista espancado
O jornalista Ronaldo Chaves do portal 14 de maio foi espancado na última terça-feira (13/5) pelo então servidor José Sobreiro de Oliveira Filho, da Prefeitura de Santo Antônio do Descoberto. O ataque foi feito no mesmo dia que a página divulgou reportagem apontando que o município gastou aproximadamente R$ 1,5 milhão na contratação de artistas, como Zezé di Camargo, Bonde do Tigrão e Grupo Revelação, para o aniversário da cidade.
José Sobreiro Filho ocupava o cargo de diretor de audiovisual do município desde janeiro deste ano.
Entenda a agressão contra o jornalista
- Nas imagens, é possível ver quando ele aborda já com um tapa o jornalista de mais 26 anos de profissão.
- Ronaldo cai sobre uma moto que estava estacionada no local.
- O servidor José, conhecido como Zeca, continua socando o rosto do jornalista, que tenta se afastar.
- Em outro momento, o jornalista recebe um mata-leão e é derrubado no chão. Ronaldo teve lesões no braço, no rosto e no joelho.
- O ataque aconteceu às 9h30, horário do expediente do servidor. Perguntado por que não estava trabalhando, ele disse que se sentia gripado e estava a caminho do hospital.
- Questionado sobre o atestado médico para não comparecer ao restante do expediente, José disse que, após a briga, desistiu de ir ao hospital e que, como não foi trabalhar, imagina ter levado falta.
- O comissionado negou que a agressão tivesse ocorrido por causa das publicações, mas sim por uma rixa antiga devido a outras matérias. “Ele fez muitas matérias minhas dizendo que eu roubava a prefeitura.”
- Perguntado por que não processou e já partiu para a agressão, o servidor que ocupa cargo de diretoria na gestão municipal alegou que não pensou direito.
- Em nota, a prefeitura do município do Entorno do Distrito Federal confirmou que José agrediu o jornalista em um horário em que deveria estar no trabalho. “o servidor estava escalado para o trabalho, mas não compareceu ao expediente”.
- “O fato, que não guarda qualquer relação com as funções desempenhadas no serviço público, será apurado internamente conforme as normas administrativas, incluindo a ausência do servidor”, completa a nota.
A prefeita Jéssica do Premium repudiou o episódio. “A gestão municipal reafirma seu compromisso com o respeito, a civilidade e o diálogo como princípios fundamentais da convivência social”.
Violência defendida por diretor da Prefeitura
O ataque covarde contra o jornalista foi defendido pelo diretor de serviços alternativos penais da Prefeitura de Santo Antônio do Descoberto, Renato de Souza Gomes, conhecido como Renato Lobo. O membro da diretoria é também o dono do portal “SAD Estamos de Olho”, que divulgou o vídeo .
A página costuma divulgar a prefeitura e, inclusive, fazer collabs (publicação colaborativa, em que duas ou mais contas criam e compartilham uma mesma publicação no feed ou no Reels, aparecendo como autores conjunto) com os perfis do deputado estadual e da prefeita.
Na publicação, o diretor Renato Lobo postou uma foto ao lado do agressor e escreveu a seguinte mensagem: “Deixe os carniceiros falarem o que quiserem. Você defendeu sua honra, meu amigo”.
Em nota, o Renato disse que a mensagem significa apenas que continuam amigos e que ele segue o amparando e o apoiando em um momento que precisa.
Ameaças de deputado casado com a prefeita
A violência contra o jornalista aconteceu um mês depois de o deputado estadual André do Premium ameaçar Ronaldo por reportagens com notícias negativas sobre o município. André é casado com a prefeita que assumiu o cargo em janeiro deste ano.
Em abril, o deputado criticou que Ronaldo havia publicado o caso de um suposto estupro de um garoto dentro de uma escola na rede municipal. Essa seria a segunda violência sexual dentro da mesma escola sob a gestão do atual secretário.
Com xingamentos e ameaças, André do Premium disse que o jornalista era um covarde e afirmou que iria para cima do dono do portal 14 de maio se houvesse mais uma matéria falando da prefeitura. Leia as conversas:
Para ter certeza da veracidade das conversas, o Metrópoles solicitou ao jornalista que gravasse um vídeo abrindo as mensagens do celular. Também conferiu o número que foi borrado na matéria para não expor o contato.
Veja as imagens:
Procurado, o deputado disse que não mandou ninguém bater e que, se tivesse ordenado, não seria pela manhã nem mesmo que teria sido apenas “tapa na cara”. Ouça esse trecho da entrevista:
O parlamentar André do Premium confessa as ameaças, mas alega que nunca fez nada contra o jornalista. Ele ainda garante que o servidor será demitido do cargo.
Ronaldo recebeu o vídeo publicado pela página de Renato Lobo, “SAD Estamos de Olho, no Instagram e se sentiu constrangido pelo tom jocoso, em que o chamavam de ‘pseudojornalista” e diziam que ele levou umas “mãozadas”.
A reportagem procurou a página SAD, Estamos de Olho para saber se eles tinham sido avisados de que haveria uma agressão. O perfil também foi questionado se há alguma parceria com o deputado e a prefeita para divulgar collabs com os dois. O administrador do perfil respondeu às investidas da reportagem com insultos e acabou não esclarecendo o que de fato havia sido perguntado.