Apesar de a Justiça ter reconhecido homens e mulheres diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) com nível de suporte 1 como pessoas com deficiência (PCDs), servidores públicos atípicos, especialmente aos que tiveram diagnóstico tardio, denunciam o Governo do Distrito Federal (GDF) por não acatar a determinação judicial, o que tem dificultado a vida desses trabalhadores. Eles alegam que enfrentam dificuldade para conseguir as adaptações necessárias para conseguir melhorias na qualidade de vida no ambiente profissional.
O TEA tem três níveis de suporte. Cada um com condições particulares. Em caso de problemas e excesso de estímulos, essas pessoas podem ficar desestabilizadas e oscilar entre os espectros, ficando mais fragilizadas. Por isso, esses pacientes buscam sempre ficar estacionadas no nível 1, para se manterem funcionais.
A professora Laiane Rocha (foto em destaque), 41 anos, recebeu diagnóstico tardio de TEA com nível 1. Ela diz que teve o pedido de caracterização negado pela Secretaria de Educação. “Além de ser autista, eu sou mãe de autista. Como PCD, tenho direito de preferência na escolha de turno. Meu intuito é acompanhar meu filho nas terapias dele”, pontuou.
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Laiane tem a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea), a credencial de estacionamento para TEA emitida pelo Departamento de Trânsito (Detran-DF), laudo psiquiátrico e avaliação neuropsicológica.
“O GDF diz que só reconhece TEA nível 3. Isso infringe a lei. Fica muito claro que não existe o propósito de inclusão. Para atender aos requisitos cobrados pelo governo, a pessoa estaria em um estado disfuncional para a atividade. A lei não diferencia TEA pelo nível de suporte. Autista é PCD”, afirmou.
Precedente
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) reconhece pessoas com TEA como PCDs. Em um dos casos, um desembargador afirmou: “O autismo leve não exclui as dificuldades para aprender ou conviver com outras pessoas. Não é o grau que define se o autista é ou não considerado pessoa com deficiência, mas sim as barreiras que a pessoa carrega em decorrência do transtorno”.





A professora Laiane Rocha, de 41 anos, recebeu diagnóstico tardio de TEA com nível 1 e teve o pedido de caracterização negado
VINÍCIUS SCHMIDT/METRÓPOLES @vinicius.foto
A negativa do GDF está em rota de colisão com decisões recentes do TJDFT
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“Além de ser autista, eu sou mãe de autista. Como PCD eu tenho direito de preferência na escolha de turno. Meu intuito é acompanhar meu filho nas terapias dele”
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Os servidores apresentam documentação e laudos e mesmo assim são negados
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O MOAB critica o fato da banca de avaliação do GDF não ser exclusivamente formada por especialistas
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A professora temporária Isabel Rodrigues Veras, 35, também diagnosticada com TEA nível 1 já na fase adulta, foi reconhecida como PCD no processo seletivo, mas não tem acesso às adaptações.
“Quero me encaixar no mundo, mas não tenho nem redução de carga horária e nenhuma adaptação. Luto para ter um trabalho e dignidade”, comentou.
A educadora tem hiperfoco em ensinar as crianças, mas sofre cansaço na socialização na coordenação da escola e sobrecarga de informações. A adaptação necessária para a servidora seria fazer o trabalho de coordenação em casa.
Em outro processo, o desembargador Hector Valverde Santanna ressaltou que a legislação considera os autistas como PCDs para todos os efeitos legais.
Na sentença, o magistrado destacou que não cabe à junta médica substituir o legislador na criação de critérios distintivos não previstos em lei para avaliação da condição de deficiência do candidato.
Segundo o senador Paulo Paim (PT-RS), autor da Lei Berenice Piana, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, o TJDFT acerta ao dar ganho de causa para os servidores. “A lei de minha autoria, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, não tem nenhuma restrição na sua aplicação em relação a níveis suporte”, afirmou.
A senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) afirma que as negativas do GDF são preocupantes e violam uma legislação federal, em vigor há mais de 10 anos, e que não faz distinção entre os níveis de suporte.
“O poder público tem o dever de ser agente de inclusão, e não mais uma barreira. Quando o Estado falha nesse papel, empurra pessoas para o caminho da judicialização, que é desgastante, injusto e desumano. O que se espera é o cumprimento da lei e o respeito à dignidade das pessoas”, ponderou.
Preconceito
O Metrópoles conversou com outros servidores com TEA nível não reconhecidos como PCDs pelo governo do DF. Eles, no entanto, pediram para ter as identidades mantidas em sigilo e serão tratados com nomes fictícios.
“A gente sofreu tanto na infância e adolescência. Esperamos ser acolhidas agora. Temos alguns direitos como PCDs, como a escolha de horário. Em certos momentos a gente fica incomodada com muito barulho. A única coisa que preciso é a escolha do turno. O barulho me causa muito sofrimento”, contou Janaína (*).
Após receber o diagnóstico tardio de TEA nível 1, o professor Rafael (*) também solicitou a caracterização de PCD e ouviu a negativa do GDF. O educador precisa de ambientes silenciosos e também tem dificuldade de convivência na sala de coordenação.
“O GDF atua de forma preconceituosa. Não aceita o grau 1, principalmente o tardio. Não tem o conhecimento que o grau 1 pode virar 2 ou até 3. Ele acredita que o suporte 1 já conseguiu suprir as dificuldades e não precisa ser enquadrado como PCD. Eles distorcem a interpretação da lei”, disparou.
O advogado Edilson Barbosa, presidente do Movimento Orgulho Autista Brasil (Moab), enviou uma carta aberta de protesto ao GDF. Ele afirmou que o modelo de avaliação da junta médica do GDF é equivocado, pois em diversos casos os exames não são conduzidos por neuropedriatras, neurologistas ou psiquiatras especialistas no diagnóstico de TEA.
“Um médico perguntou para uma servidora PCD: ‘Você estudou, casou, teve filho, dirige?’ Ela respondeu que sim, e ele alegou que ela não tinha deficiência. Essas pessoas não sabem o que é ser autista. O GDF peca na banca de avaliação”, declarou.
Outro lado
Apesar das denúncias, a Secretaria de Economia, por meio da Subsaúde, disse seguir “todas as leis que garantem os direitos das pessoas com deficiência, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência e outras normas federais e distritais”.
“As juntas médicas não questionam ou confirmam diagnósticos feitos pelos médicos assistentes dos servidores, tampouco emitem novos diagnósticos. Elas são formadas por médicos peritos ou médicos do trabalho e fazem uma avaliação voltada à saúde ocupacional”, argumentou a pasta.
A secretaria ressaltou que, para que o servidor com TEA seja reconhecido como pessoa com deficiência, ele precisa se enquadrar em uma das duas situações previstas na Lei Federal nº 12.764/12:
I – ter dificuldade persistente e significativa na comunicação e nas interações sociais;
II – apresentar comportamentos repetitivos, rotinas rígidas ou interesses muito restritos.
O Metrópoles perguntou sobre dados consolidados de pedidos de reconhecimento de TEA, mas a pasta declarou não ter essas informações.
(*) – Nome fictício a pedido do entrevistado.